23.5.08

Entrevista a Bruto da Costa

Entrevista ao coordenador do estudo "Um Olhar Sobre a Pobreza" (Público 23/5)
Pobreza em Portugal: "É preciso subir os salários e diversificar fontes de rendimento"
O livro sai em Junho pela Gradiva com o seguinte título: Um olhar sobre a pobreza: vulnerabilidade e exclusão social no Portugal contemporâneo
O coordenador do estudo “Um Olhar Sobre a Pobreza”, Alfredo Bruto da Costa, não tem dúvidas: os baixos salários são um problema grave, que contribui para a pobreza em Portugal. É preciso aumentar os ordenados e democratizar as empresas.
É mesmo verdade que metade da população portuguesa está numa situação vulnerável à pobreza? É mesmo assim. Este é um aspecto da pobreza que, em Portugal, é analisado pela primeira vez: quantas pessoas, ao longo de seis anos, passaram pela pobreza e foram apanhadas como pobres em pelo menos um dos anos. A opinião pública, enquanto tal, nunca foi confrontada com esta realidade.
E a opinião pública pergunta: onde estão os pobres? Esse é outro problema: o da definição de pobreza. Quando se pensa em pobreza, pensa-se em miséria ou nos sem-abrigo. O pobre, na definição adoptada no estudo, é alguém que não consegue satisfazer de forma regular todas as necessidades básicas, assim consideradas numa sociedade como a nossa. Miséria é uma parte disso.
Apesar de tudo, mais vale ser pobre em Portugal do que em alguns países de África ou da Ásia?Sim, em termos absolutos. Em termos relativos, não necessariamente. Porque a pobreza é um fenómeno social, não apenas individual: é não ter recursos para participar nos hábitos e costumes da sociedade. Se uma criança pobre não pode vestir-se como os seus colegas, para não ser ridicularizada, mesmo que tenha mais que uma criança em África, sofre de exclusão. O que é preciso para não ser estigmatizado em Portugal é muito mais do que em outros países. Há uma definição do século XIX, que diz que uma pessoa é pobre quando não tem dinheiro para vestir uma camisa que seja aceitável na sociedade.
Os 47 por cento de famílias que viveram uma situação de pobreza não são o mesmo que a taxa de pobreza em Portugal que continua nos 20 por cento. Há uma população, num determinado momento do tempo, que é analisada através de uma radiografia instantânea – são os 20 por cento. Outra coisa é uma sociedade cuja vida só é captada num estudo longitudinal, ao longo de um período.
Porque se fala da persistência da pobreza em Portugal? A partir da entrada de Portugal na Comunidade Europeia, houve um facto que alterou a atitude da sociedade portuguesa perante a pobreza: Portugal passou a ter programas de luta contra a pobreza, através de metodologias que deram um salto qualitativo no modo de encarar e tratar a pobreza. Poderíamos esperar que a pobreza tivesse uma redução apreciável.
E não teve? Não teve. Em 2004, terá sido de 19 por cento, em 2005 terá sido 18 por cento. É uma tendência? Falta ver o que se passou nos anos seguintes. O que sabemos é que, durante esse período de 20 anos, andámos à volta dos 20 por cento. Mesmo que se admita que houve uma tendência ligeiramente decrescente, não explica que a ordem de grandeza se situe nos 20 por cento. A pobreza em Portugal ou se manteve estável ou teve uma redução sem proporção com o esforço feito desde que Portugal entrou na UE, na luta contra a pobreza.
E qual é razão principal? São várias. Mas há uma questão chave: é tempo de a sociedade se interrogar sobre o porquê esta resistência da pobreza perante tanto esforço, boa vontade, recursos, nos últimos 20 anos. Neste estudo, não entrámos no porquê. Estamos muito virados para a ideia de que a luta contra a pobreza é igual a políticas sociais. Quando há uma percentagem tão elevada de famílias pobres entre pessoas empregadas, vê-se claramente que a política social é um instrumento útil, mas não resolve tudo. Pode ser decisivo para o terço de pensionistas ou para o outro terço, de outros inactivos como domésticas, que nunca trabalharam nem tencionam trabalhar. Aí, ou a sociedade portuguesa resolve valorizar economicamente o trabalho doméstico e tem uma modalidade de remuneração – o que seria uma revolução cultural – ou isso nunca se resolve. A outra parte – os pobres que estão empregados, por conta própria ou por conta de outrem – não se resolve com política social, é um problema económico.
É um problema de salário? É fundamentalmente um problema de salário.
O texto diz que os salários são uma questão complexa e o que há a fazer está sobejamente identificado. É subir os salários? Sim. Mas pode-se subir os salários sem aumentar a produtividade? Todos dizem que a economia portuguesa não pode continuar com salários baixos. O que se diz a seguir é que os salários não podem aumentar sem aumentar a produtividade. Uma das causas de baixa produtividade é a baixa qualificação dos trabalhadores, mas isso só explica uma parte muito pequena.
Uma das razões essenciais é a evasão fiscal. Há muitas outras: a organização da empresa, os métodos de gestão. Há uns anos, se se dissesse que também os empresários tinham baixas qualificações, seria quase um escândalo. Hoje, é uma realidade que entra pelos olhos dentro. A sociedade portuguesa estava atrasada em termos de qualificações, a todos os níveis. Temos que fazer uma opção: ou se resolve o problema dos rendimentos das famílias de outra forma ou se declara que nos próximos 20 ou 50 anos os salários continuarão baixos.
Essa não é a sua opção? Claramente que não. Há muito que defendo que deve haver uma diversificação das fontes de rendimento: uma parte do trabalho, outra do capital, o que implica uma democratização no acesso ao capital, que não é só poder comprar uma acção: o número de acções que um cidadão comum tem não lhe permite ter a mais pequena influência na gestão da empresa. O que importa que o capital esteja disseminado quando quem continua a mandar são os grandes? A democratização do capital deve ser também a democratização da empresa. Pode haver ainda medidas como um rendimento básico – já utilizado numa região da Bélgica e num estado norte-americano – que todos os cidadãos recebem, sobre o qual constrói o seu rendimento familiar. Esse rendimento básico pode não ser suficiente para viver, mas é uma almofada que protege nos ciclos em que inesperadamente se perde o rendimento. Num mercado economicamente liberal, temos que saber se é possível alguma vez termos pleno emprego. Eu tenho dúvidas.
A prioridade que se dá à redução do emprego não é então viável? Tenho dúvidas de que seja. Pode ser reflexo de falta de coragem para aceitar a realidade. Se tivéssemos a lucidez de o admitir, haveria outro tipo de medidas a tomar para acorrer a essas situações.
O estudo fala no ciclo vicioso da pobreza: o pobre tem baixas qualificações e não melhora as qualificações porque é pobre. Como se rompe isto? Uma das respostas é que o sistema educativo tem que ter condições de acesso e sucesso das crianças provenientes dos meios pobres. O sistema educativo está desenhado à imagem da família média e média alta: métodos pedagógicos, conteúdos escolares, o tipo de apoio que a criança pode ou não ter em casa, dadas as condições de habitação ou o grau de instrução dos pais… Há certos pressupostos de que os pais têm conhecimento para ajudar, de que têm acesso à internet ou a livros de consulta… Às vezes, as crianças não têm sequer um canto para fazer os trabalhos de casa.
Os programas de luta contra a pobreza não têm funcionado porquê? Todos os projectos são desenhados de modo a não mexer no resto da sociedade. Essa é uma limitação decisiva. Se não há mudança social, não pode haver erradicação da pobreza. Se os programas não tocam no resto da sociedade, tentam resolver a pobreza dentro do universo da pobreza, mas não estão a resolver as causas.
Como vê as medidas tomadas pelo actual Governo? Há uma medida que pode reduzir a pobreza em cerca de um terço: levar o Complemento Solidário para Idosos até ao limiar de pobreza, por adulto equivalente.
O estudo abrange o melhor período do então Rendimento Mínimo Garantido [RMG], que pelos vistos não ajudou muito. O RMG nunca foi para resolver o problema da pobreza; a grande maioria dos pobres nem sequer tinha acesso ao RMG: eram cinco por cento, os pobres eram 20 por cento. São tão poucos os pobres que beneficiam do [actual] Rendimento Social de Inserção que nunca se resolveria o problema da pobreza. O RMG tinha dois objectivos: atenuar a pobreza dos pobres ou o seu grau de carência; e ir ao encontro dos problemas subjacentes à família: formação profissional, integração das crianças na escola. Mas o impacto global sobre a pobreza não podia ser expressivo.
Isso confirma que o problema não se resolve só com políticas sociais. Por definição: se tenho um problema de repartição primária (o dos salários), ele resolve-se por via da política económica.
Há uma afirmação dura: “A sociedade portuguesa não está preparada para apoiar as medidas necessárias” no combate à pobreza... Isso porque num inquérito europeu de 2002 dois terços dos portugueses atribui a pobreza a factores que não são solúveis: fatalismo, má sorte, preguiça dos pobres. Se eu disser que vou tomar uma medida que terá alguma desvantagem para os que têm mais rendimentos, a sociedade portuguesa não vai perceber isto. Um dos programas de luta contra a pobreza tem que ser o de esclarecer a opinião pública sobre as verdadeiras causas da pobreza.
Está também disseminada a ideia de que há muitos pobres que abusam... É uma atitude culpabilizante. Na transição do Rendimento Mínimo Garantido para o Rendimento Social de Inserção, no debate público que houve parecia que as pessoas estavam mais interessadas em combater a fraude dos pobres do que em resolver o problema da pobreza. Isto é expressivo de uma mentalidade.

4 comentários:

Duarte disse...

Apenas uma palavra: aplausos!

Que bom seria que TODOS os portugueses (e não apenas os políticos), sobretudo os que desconhecem a realidade, os que não são afectados, os que possuem uma representação social preconceituosa da realidade social, lessem com atenção esta entrevista. Espero que os media, em especial a tv, faça eco das palavras do Prof. Bruto da Costa. Que bom seria, também, que a APSS ajudasse nesse eco. Utopia?

S Guadalupe disse...

Eu também espero. Mas ainda assim temo que o eco seja pouco. Poderemos pensar em estratégias para amplificar o eco, mas nunca é fácil... as discussões são tão passageiras e superficiais, a rapidez da notícia do momento é tanta que não dá para deglutir nada.

Já a fiz chegar aos e-mails de alunos, ex-alunos e professores. Semear posicionamentos fundamentadaos continua a ser a minha aposta!!!

No que toca à minha responsabilidade na APSS tomarei a iniciativa de divulgar a entrevista entre os sócios e os profissionais da sua mailing list.

Duarte disse...

Fiz esta sugestão em dois momentos (um encontro regional da APSS em 2006 e uma reunião no mesmo ano), para além de alguns e-mails: a APSS, através de memorandos ou artigos, poderia enviar pareceres aos media, por exemplo a agências de informação como a Lusa para posterior divulgação junto dos restantes órgãos, acerca de notícias sobre a realidade social, sobretudo no que concerne mais directamente à intervenção dos assistentes sociais. É uma estratégia seguida por outras associações e ordens profissionais. Mesmo que ao início não obtivesse eco, a chave estaria na persistência. Os jornalistas gostam destas coisas e mais cedo ou mais tarde, viriam ter com a própria APSS, criando o hábito de a consultar acerca destas temáticas. Mas teria que ser de forma sistemática até "pegar". Poderiam constituir um grupo que se dedicasse a esta matéria e que monitorizasse os media, mas que poderia acabar por susciptar a atenção destes para assuntos emanados da própria APSS. A minha convicção é que o Serviço Social tem o dever de não se remeter ao silêncio sobre tudo o que diga respeito à realidade social portuguesa. Se falamos em consciencializar, em empoderar, em praticar a tal advocacia social que se estuda, quem representa a classe tem de dar esse exemplo. Estou certo de que teriam o contributo de muitos colegas, mesmo que não pertencessem à estrutura da APSS, como é o meu caso. Há-que tomar posição se queremos também desmistificar muita coisa relacionada com a nossa actividade e que lemos frequentemente nos jornais e que nos causa indignação. Quem tem a responsabilidade de esclarecer somos nós. Enfim, são só ideias que infelizmente ainda não tiveram eco.

S Guadalupe disse...

A questão não só está no empowerment da profissão como também na capacidade das estruturas que são montadas.

Duarte, sabe bem que concordo com os seus reptos e gostaria de admitir que tem sido por simples desleixo, mas não... tenho-me apercebido que a APSS tem estado representada em imensos eventos e que não se dá conta disso. Há muito trabalho invisível. Estamos agora empenhados em dar visibilidade para dentro e terão de ser definidas estratégias dirigidas para fora.

A engrenagem de uma organização destas baseada no voluntariado não é fácil e há muito que falha, como é óbvio!

Contamos consigo e com a sua energia, como é óbvio, e com a participação activa de outros sócios (e assistentes sociais, em geral), mas não tem sido fácil, ao contrário do que pensa... contar com gente que se envolva e se comprometa. É penoso, mas poucos poderão fazer muito! Logo veremos daqui a uns meses, como está a situação.

Esta notícia das desigualdades pode estimular a participação dos assistentes sociais no debate público. Assim espero!